terça-feira, 8 de março de 2011

As revoltas nos países do Magreb e o 12/Março

1. A reacção do ocidente aos processo de revolução na Tunísia e no Egipto, primeiro, e agora na Líbia, tem sido contraditória. Por um lado, os manifestantes revoltosos derrubaram as ditaduras dos dois primeiros países e apregoam valores democráticos. Mas, por outro, o exemplo do Irão, onde o derrube do ditador conduziu a um regime fundamentalista, conduz ao receio de que o fundamentalismo possa vir a apossar-se desses países. Interpretam-se, a essa luz, sinais que não podem deixar de ser considerados preocupantes - os revoltosos de ambos os países, ajoelhavam-se à hora das orações, como uma massa humana sem descontinuidades - portanto, não havia entre os revoltosos nem cristãos, nem ateus, apenas maometanos - o que implica falta de liberdade religiosa - mas também havia uma clara aceitação de uma religião que descrimina as mulheres (não há pois igualdade de género).

Essa contradição de interpretações nos países ocidentais - e mesmo mundiais - manifestou-se, no caso da Tunísia e Egipto, em que os ditadores saíram pelo seu pé, quando perderam o apoio dos respectivos exércitos, apenas nos comentários que se ouviam ou liam; mas no caso do Líbia, assiste-se a um verdadeiro genocídio sem que haja qualquer tentativa atempada, por parte do mundo ocidental, para lhe pôr fim e com a nomeação de um país até aqui amigo da Líbia (Portugal), para presidir à Comissão de controle das sanções da ONU.

2. Uma pequena revisão da história parece útil. É normalmente considerado que o modelo de democracia em que hoje vivemos no Ocidente, começou com a Revolução Francesa, de 1789, que também inspirou a Revolução Americana. O facto de que os países vivem períodos de "evolução" na continuidade de um certo regime, alternando com períodos de "Revolução", que mudam o sistema e fazem tábua rasa e põe fim abrupto aos privilégios ilegitimamente detidos por alguns (períodos revolucionários) é também geralmente aceite - e até aplicado, por extensão, à própria evolução da ciência, por Khun, num livro muito citado ("The Structure of Scientific Revolutions", de 1962), mas pouco lido, e pior compreendido.
O que raramente se refere é que durante dois séculos, depois da Revolução Francesa, este país não viveu em democracia, que o voto das mulheres só foi estabelecido em 1906, e que uma verdadeira democracia, como hoje a entendemos, só foi estabelecida com a Constituição de 1958, quase dois séculos depois de 1789.

3. Também pouco se refere que a "Democracia Representativa" não impede, só por si, os privilégios e a corrupção, antes sendo, nalguns casos, uma "democracia aparente", pois o poder "alterna" entre partidos tão semelhantes que, em verdade, se confundem e representam sempre os interesses dos mesmos poderes económicos, apenas "alternando" quem recebe mais privilégios, mordomias e receitas da corrupção num certo período, com inteiro desprezo pelo povo que, com os seus impostos, sustenta esta voragem e que, em cada processo eleitoral, apenas "escolhe os representantes da classe dominante que o vão explorar no próximo período" (uma citação, que por acaso é de Marx - o qual também deveria ser repensado à luz de Khun, mas isso fica para outra ocasião). Podia-se pois também chamar uma "democracia de alterne".

4. Essa pseudo-democracia que é, na verdade, uma oligarquia do "centrão", que tem destruído o país, e o tem endividado, com juros que serão ainda pagos pelos nossos trisnetos, é tão evidente que, há alguns anos, o próprio Mário Soares disse que com a situação existente em Portugal, só não haveria uma revolução por Portugal pertencer à UE. Colocava, aliás, outra questão crucial - se as revoluções são essenciais para o processo histórico, com o desarmamento da população, um exército profissionalizado e já não baseado em todos os cidadãos por recrutamento, e a pertença a uma união alargada (em que é hoje evidente que a Alemanha domina a seu belo prazer, conseguindo assim, pela paz, o que não tinha conseguido em duas guerras mundiais por que foi responsável) as revoluções eram cada vez mais difíceis de concretizar.

5. Voltando às revoltas no Magreb, um artigo do Público dá do processo uma perspectiva diferente e que pode ser muito inspiradora. No Público de Domingo, um curioso artigo de Sofia Lorena ("Como as revoltas árabes mataram a narrativa da Al-Qaeda") dá uma perspectiva diferente dessas revoltas, mostrando que elas foram conduzidas "sob slogans heréticos para os jihadistas" e mostra que em mais de 20 anos a Al-Qaeda foi incapaz de "desestabilizar" essas ditaduras amigas do ocidente" (e que este apoiava declaradamente), mas que tais regimes foram "derrubados em poucas semanas por manifestantes desarmados".

Independentemente da importância que isso pode ter para a democratização dos países árabes - que, necessariamente, passará por décadas até se poder chamar "democrático", no sentido ocidental, mas pode vir no caminho certo, não é de excluir que essas reformas se possam estender a outros países, quer na África subsariana - e Angola seria um bom candidato! - quer na Europa - onde Portugal é o candidato ideal, quer pela situação de crise pela qual todos os actuais partidos são responsáveis, quer porque a ocupação árabe, durante séculos, deixou cá não apenas um fundo genético, mas alguns aspectos culturais - quer noutros locais. Aliás, os árabes deram à cultura ocidental elementos fundamentais, começando desde logo pela numeração árabe. Porque não hão-de dar agora um modelo de como fazer revoluções em sociedades asfixiadas, por esta imagem de que a democracia representativa é boa e os partidos indispensáveis, quando todos percebemos que elas são boas para o capital e os militantes desses partidos, mas não para o povo. E que "grupos de cidadãos" podem mudar as regras do jogo.

6. No Público de ontem, uma crónica de Rui Tavares, que nunca se referia ao Magreb, mas apenas à manifestação de 12/Março, sugeria que o processo desta manifestação ultrapassava o dilema "reformas versus revolução" e sugeria que esses movimentos eram "reformulacionários" , pois não pretendiam tomar o poder mas "alterar as regras do jogo" e acrescenta: "E como fazê-lo? Fazendo. Mais do que nas tácticas, os reformulacionários estão essencialmente interessados nos princípios. Não sabemos para onde vamos, mas queremos dar o primeiro passo de forma certa. E depois o segundo". Recomendo a leitura completa, que não vou resumir aqui. Curiosamente "reformular as regras do jogo" é a principal coisa que resulta de qualquer revolução social ou de qualquer revolução científica. Khun chamar-lhe-ia uma "mudança de paradigma".

7. É isso que espero da manifestação de 12/Março, que contribua, modestamente talvez, eventualmente de forma crescente, para uma "mudança de paradigma", que os partidos (todos) se mostram incapazes de fazer. Acho que é por isso que uma questão aberta, salvo erro, no site do movimento, tem tido tão poucas respostas. A que se refere a "O que fazer no dia seguinte?". É que a resposta a essa questão, numa perspectiva de "reformulação", não pode ser dada hoje. Terá de se ver o que acontece em todo o país no dia 12 e, depois, mas rapidamente, pensar qual é o próximo passo.

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